O nosso Juízo Particular vai construir o nosso currículo de vida
na Terra. É ele que irá avaliar e julgar o que virá com a separação de nosso
corpo da alma espiritual. É, portanto, o somatório de nossos valores,
desvalores e opções neste mundo material que vão lavrar a nossa própria
sentença pós-separação.
Eis, o que em poucas frases podemos dizer sobre a vida após a
morte. Não esqueçamos, no entanto, que a respeito de tal assunto, mais podemos
balbuciar do que dissertar, pois São Paulo nos diz: “O que os olhos não viram,
o que os ouvidos não ouviram e o coração do homem jamais percebeu, eis o que
Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2,9).
Se a vida precede a morte na sequência do tempo, a
morte precede a vida na sequência da eternidade. A morte pode ser o fim da
ilusão da vida, mas é o princípio da verdadeira vida, da vida imortal da alma.
(Charles François Gounod)
O que haverá depois da morte?
A morte consiste na separação entre o corpo e a alma. O corpo,
desgastado pelo uso e pelo tempo, já não oferece condições para que a alma ou o
princípio vital nele permaneça e exerça as suas funções. Consequentemente, o
corpo, feito cadáver, é lançado à terra, e a alma, sendo espiritual, sobrevive;
ela é imortal por si mesma, pois os seres espirituais não morrem, não se
decompõem.
A alma, uma vez separada do corpo pela morte, não perde a
consciência lúcida, não fica adormecida. Falamos do "sono da morte"
por metáfora, ou seja, porque os mortos "parecem" dormir. Na verdade,
porém, os cadáveres não têm mais vida, ao passo que as almas, separadas de seus
corpos, continuam a viver com toda a lucidez.
Logo após a morte se dá o juízo particular. Este não consiste
numa avaliação dos prós e contras da nossa conduta terrestre, pois somos nós
quem nos julgamos nesta Terra, ao nos posicionarmos a favor ou contra Deus.
Morremos com a nossa sentença lavrada por nós mesmos, com nossa opção feita.
O juízo particular, portanto, consiste na iluminação de todo o
nosso currículo de vida, para que possamos ver, com objetividade e sem
preconceitos, os valores e desvalores da nossa conduta terrestre.
Assim iluminada, a alma humana deseja imediatamente colher os
frutos da semeadura realizada na Terra; ela deseja espontaneamente a justa
sorte que lhe compete. O fato de não estar unida ao corpo não impede de
utilizar os conhecimentos adquiridos na Terra e de praticar atos de
inteligência e de vontade.
Os conceitos de céu, inferno e purgatório:
Após a morte e o juízo particular, mesmo antes da ressurreição
da carne (que se dará no fim dos tempos), o ser humano tem três destinos
possíveis:
1 - O céu que é a visão de Deus face a face ou a satisfação
plena de todos os nossos anseios, sem aborrecimento nem tédio. Deus será sempre
a grande maravilha para os justos no céu. Na pátria celeste, os justos, vendo a
Deus, veem também seus familiares e amigos plenamente identificáveis, embora
ainda não ressuscitados corporalmente (a alma humana, como no princípio vida,
traz em si os traços típicos da personalidade de cada um de nós.)
Os justos podem interceder por nós no céu, pois Deus nos fez
solidários uns com os outros (vivemos na "Comunhão dos Santos"), e
esta solidariedade ou comunhão não é rompida pela morte. Deus a conserva e faz
com que os justos e Santos no céu conheçam as nossas preces e possam orar por
nós.
Especialmente a Virgem Santíssima, na qualidade de Mãe do gênero
humano (cf Jo 19, 26), é a Grande Orante que leva ao seu Divino Filho as suas
preces em favor dos homens na Terra. Ela, que foi a intercessora do primeiro
milagre de Jesus em Caná da Galileia - ao dizer, muito discretamente, com um
olhar de mãe atenta: "Eles não têm pão, ...não têm casa, ...não têm roupa,
...não têm paz, ...não têm amor, ...não têm harmonia conjugal...”
2 - o purgatório, que é a antecâmara do céu. Com efeito, para
ver a Deus face a face, o ser humano precisa de estar isento de qualquer sombra
de pecado, pois Ele é três vezes Santo. Assim, se alguém morre com seu amor
voltado para Deus, mas ainda está contaminado por traços de amor próprio,
egoísmo, preguiça, vaidade, omissão, precisará de se libertar dessas escórias
do pecado (impropriamente ditas "os pecadinhos de cada dia"). Isto se
faz estado (e não num lugar) chamado "purgatório".
O purgatório não é um lugar onde há fogo e tormentos físicos,
mas sim um estágio no qual, voluntariamente, a alma portadora de incoerências,
repudia radicalmente o pecado e se desapega totalmente dele, a fim de poder ver
a Deus face a face. O purgatório é, portanto, algo de muito lógico: um estado
em que nós vivenciamos a experiência de fazer um sincero ato de contrição e de
nos livrarmos do pecado.
Nós somos sempre traídos por nós mesmos, porque dias depois de
nos arrependermos voltamos ás mesmas faltas, tão arraigado está em nós o
princípio do pecado. Ora, essa presença profunda do pecado em nosso íntimo
precisa de ter um fim: ou acaba na vida presente (mediante uma ascese muito
vigilante) ou na vida futura (no estágio do purgatório).
A duração do purgatório não se mede em dias e anos, mas pelo
tempo psicológico (ou "evo"), cujas unidades são os nossos atos de
conhecimento e amor (teremos sucessivos atos de conhecimentos e vontade no
além).
3- o inferno, que é o estado (e não o lugar) no qual o pecador
que tenha morrido apegado ao pecado e avesso a Deus sente a amargura de ter
dito "não" a Ele, o Sumo Bem, o Único Bem que não podia ser perdido,
mas que foi trocado por um ídolo (o dinheiro, o prazer, a glória...) ou por uma
bolha de sabão (colorida por fora, mas vazia por dentro).
O inferno é a frustração definitiva. Não sabemos quantas pessoas
morrem impenitentes ou voltadas conscientemente para o pecado; até o fim da
vida Deus acompanha os seus filhos mais rebeldes, oferecendo-lhes a sua graça.
O inferno é tormentoso, porque Deus continua a amar o pecador
que dele se afastou e que se condenou voluntariamente (pois, na verdade, não é
Deus quem condena, mas é o humano que, voluntariamente dizendo "não"
a Deus, se projeta na desgraça). O pecador reconhece finalmente que Deus é o
Supremo Bem, mas não lhe quer aderir, pois a morte fixa cada um de nós na sua
última opção; após a morte não é possível a conversão.
(Dom Estêvão Bettencourt - Foi um dos mais destacados teólogos
brasileiro do século XX. Foi também monge da Ordem dos Beneditinos do Mosteiro
de São Bento, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil - 1919/2008)
Abraços e muita paz!
Currículo de Vida e a Alma Espiritual
Reviewed by Luís Eduardo Pirollo
on
fevereiro 07, 2016
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